terça-feira, 10 de abril de 2012

O PUM E A MORTE JOGANDO XADREZ


Ontem li um livro e assisti a um filme. Foi isso tudo o que fiz durante o dia todo, Parece pouco, mas, não é. Meu dia é muito longo. Começa por volta das três e termina entorno das 22 horas. Um pouco mais, um pouco menos. São quase 20 horas de muito o que fazer. E haja coisa pra fazer. O livro, pois, consumi em dez horas já que tem pouco mais de100 páginas. Seu conteúdo trata de um assunto divertido e nauseabundo – sim tem tudo a ver com essa palavra em todos os sentidos, como logo perceberão. Não se trata de literatura, nem pretende ser um ensaio científico, pois diz o autor que “a ciência é coisa séria, mas pode divertir. O humor, apesar de divertido, pode ser sério e ensinar.” É verdade, diverti-me e aprendi muito sobre o pum, que é como chamamos com intimidade e educadamente os gases intestinais ou peido, jeito mais chulo e vulgar. Logo no início conta o autor, o médico gaúcho Guenther Von Eye, escreve que Heródoto, o pai da história, em seu livro Euterpe, conta que quando o rei egípcio Apries invadiu a terra dos Cirineus mandou um general para acalmar o povo revoltado. Estranhamente o general invasor foi aclamado rei. Apries sentindo-se traído mandou outro general para capturar o traidor e leva-lo a presença dele. As negociações entre os dois generais deram-se em campo aberto e com os dois montados cada um em seu cavalo. Não houve acordo. O general, agora rei dos Cirineus,ajeitou-se na cela e erguendo uma perna soltou um ruidoso peido dizendo: leva isso para Apres.
Nesse momento, nesse trecho do livro, Vulpino Argento, o Demente, e suplente de senador não eleito, que por cima do meu ombro tomava carona na minha leitura, me interrompe.
- “Divino Mestre – detesto quando ele me trata assim - pare de ler e imagine deputados e senadores ajeitando a bunda nas confortáveis poltronas dos seus gabinetes e, em conjunto, soltando um estrondoso peido nacional, dizer aos assessores: levem isso para o povo.”
- “Ficção em estado bruto!” – respondi sem muita convicção e voltei ao livro. O assunto é mais sério do que imaginava e tem variáveis que jamais imaginei, dado que nunca me importei com essa questão além do necessário; devidos cuidados com a minha natural e comum flatulência e as experiências que tiveram meu nariz e meus ouvidos com a flatulência alheia. Todas desagradáveis e sem nenhuma graça. Mas Von Eye, que é um especialista no assunto, trata dos gazes intestinais e dos males que provoca, com graça.
- “Quanto peidamos por dia?”, indaga e responde no capitulo “Perguntas Frequentes em Consultório Médico”.
- “ normal é que a pessoa adulta elimine em torno de 17 peidos, em 24 horas, algumas mais outras menos. Cada peido contém cerca de 150 a 200 ml de gás. O número de peidos pode variar de pessoa para pessoa. Existem pessoas que soltam 400 num dia. Outro registro em três anos a média de 11 por dia. Os gases que a pessoa elimina quando vai evacuar, geralmente não são computados e registrados como peidos. Dos gases produzidos no interior das tripas, só 10 por cento é eliminado via anal.”
Sinceramente não sei como pude viver todos esses anos que tenho, sem saber disso. Nem sei como outras pessoas doutas em diversos saberes complexos como a física quântica,como as dobras do universo ignorem esse assunto e tenham suportado viver sem saber  sobre essas escatologias gasosas intestinais.Surpreendente.
O filme, sim, depois da leitura do divertido do livro “O Pum é Coisa Séria”, é menos divertido, mas ainda assim engraçado. Todavia dizer que “O Sétimo Selo”, tido como obra prima de Ingmar Bergman é engraçado, pode ofender cinéfilos e fãs do cineasta sueco. Para quem não viu, resumo a história. O filme é de 1956 e em preto e branco, o que evidentemente não o desmerece,conta que ao retornar das Cruzadas o cavaleiro Antonius Block encontra o país devastado pela peste negra. Refletindo sobre o significado da vida, já com sua fé em Deus abalada, surge-lhe a Morte. Havia chegado sua hora e ele terá de partir com ela. Porém, tentando ganhar tempo convida a Morte para um jogo de xadrez. Se ganhar ele fica, não partirá com ela. A Morte aceita o desafio, já que não perde nunca.
O final da história é obvio e pelo filme se arrasta um debate pseudofilosófico sobre Deus, o Diabo, a existência humana, a fé, a religião... e outras angustias que, para a maioria das pessoas, só se encontra conforto na religião. E não é de hoje. Na Idade Média tudo era entendido através da religião e é com esse entendimento que Antonius, o cavaleiro cruzado, questiona o papel de Deus e do Diabo, essas entidades metafísicas, que apenas entre nós, põem em prática seus poderes de vida e de morte. Inútil jogar com a Morte, ela ganhará sempre. Inútil discutir a morte fora da religião. E é nessa perspectiva de religiosidade que, no filme, os personagens homens é que falam em nome de Deus e do Diabo porque o que é sagrado é mudo.
De resto, fotografia pesada, quase sufocante, cenários, interpretações, com caras e bocas de Matilde, e direção, estão de acordo com o cinema sueco de 1956. Um bom filme com excelente ator principal, o depois famoso Max Von Sydow, e primorosa direção e algumas situações engraçadas.
Desde quando vi o “O Sétimo Selo” pela primeira vez até hoje, já se passaram 50 anos e eu não pensava assim. Como em todas as obras, livros que lemos, filmes e peças teatrais que assistimos e nos maravilhamos na juventude, a revisita pode trazer alguma frustração no apogeu da vida. É quando percebemos que, quando moços acreditamos nas pessoas e nas utopias; seguimos e copiamos líderes e até tentamos torna-las realidade. Alguns passos adiante, já com os pés na meia idade, selecionamos aqueles em quem acreditamos e sabemos que utopias não se põem em prática. E nos últimos passos da jornada, mais experientes, temos a sensação, às vezes inconveniente, de que já temos respostas para quase tudo: os heróis se foram, os líderes restam poucos. As utopias são o que são em si mesmas, e as ideias alteram-se, modificam-se, adaptam-se aos tempos. Restam, enfim, os princípios e a certeza de que por falta de tempo ninguém jamais poderá ter, saber e conhecer tudo o que se pretendia naqueles tempos de delírios intelectuais mas, sim, apenas o necessário possível. O tempo, todavia, esse aliado da morte, tudo pode. Refaz, apaga, cura e conserta. Portanto não economizemos tempo, o que é impossível, nem tente mos ganhar tempo, o que é absurdo. Vivamos, e vivamos bem, porque essa é a maior vingança contra o tempo.
Vingança, aqui, não se refere àquela prática inadmissível judaico-cristã que se reconhece como falha de caráter, carregada de ódio e culpa, nem aquela da doutrina espírita que entende ser ela uma “ação maléfica sobre nosso físico, com repercussão no espírito imortal que somos”.

Essa vingança, a que me refiro aqui, não; essa é a vingança contra o tempo inexorável.  Ela é racional e doce e bem aproveita o tempo, carpe diem, quase epicurista. Essa vingança é viver o estado lúcido da “atarexia” e da “aponia”, que nos ensinou Epicuro de Samos, sem confundir-se com a concepção hedonista pejorativa dada pelos iluministas. Viver bem é a maior vingança.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O CÂNCER ALOJOU-SE EM MIM SEM AVISO E PERMISSÂO

ADVERTÊNCIA
Esse é o relato de minha experiência com o câncer. O propósito não é chocar ninguém; também não é autopromoção, tirar proveitos, como se vê hoje em dia fazerem, descaradamente, muitos “famosos”. O texto é longo. Já recebi muitas reclamações de leitores, dizendo que meus textos “são bons, mas muito longos”. Agradeço e lamento. Há quem apenas goste de ler “posts”, “tweters”, “gossips” coisas de cento e poucas palavras.
Mas há quem não se importe com o tamanho e sim com o conteúdo; afinal é o que importa; se preferem assim!
2010 AINDA NÃO TERMINOU
Mal começou 2012 e já está igualzinho ao que se foi. Mal nos dois sentidos; recém iniciado e ruim, ainda que em nem tudo. Chove à cântaros nas regiões de sempre no janeiro de todos os anos, no Brasil de sempre. Nada de novo; nem a incompetência do governo, nem os desvios de dinheiro, que nunca chegam a quem se destina; a lesma lerda de sempre
Mundo a fora, em guerras e durante a fúria da natureza, entre mortos e feridos salvaram-se alguns, menos da morte que não poupa ninguém. Como ela não tem a mínima consideração com os vivos, o que é do seu oficio, levou, indistintamente, quem já foi tarde, tanto quanto quem nos fará falta. Uma injustiça mortal, nesse caso; no outro um alívio para o povo da Terra. Mesmo assim uma perda irreparável para os que os amavam. Sim, tiranos também têm seus amantes.
Farão falta aqueles que fizeram e ainda fariam coisas boas e importantes; poderão ser substituídos, eu sei, como também sei que outros surgirão ainda melhores e com novidades que me encantarão, a mim e há muitos outros mais. Partiram também, para nunca mais voltar, além dos notórios e conhecidos, alguns invisíveis aos olhos do mundo, porém vistos e amados por uns poucos.
Nada de novo; o previsível e o inevitável vão acontecendo. De resto fica a esperança. Todavia “quando se vê o que se espera, não há esperança” há tempos disse Agostinho, que depois da morte foi tornado santo. Eu não espero nada (a esperança, me disseram, é a última que morre, portanto morre; se fosse imortal...) visto porque não tenho paciência e tenho pouco tempo. Tenho desejos, sim, e faço o que posso com o que sei e como posso com o que tenho que não são armas, mas apenas ferramentas, umas poucas e boas, ainda que desgastadas pelos longos anos de uso. Entre elas as letras e algumas atitudes e umas poucas escolhas.
Com essas ferramentas faço com que meus desejos saiam da inércia e de dentro de mim, para que aqui no mundo das coisas e do real, único mundo possível, tomem forma e fiquem do jeito que quero. Nem sempre consigo, por mais que me esforce (e muitas vezes faço um esforço danado) quando certas pessoas e outros fatores, mesmo os previsíveis, interferem a coisa vira um inferno; e como bem disse Jean Paul Sartre, “o inferno são os outros”.
E SÃO MUITOS OS FATORES
E são muitos os fatores imprevisíveis. E também são muitos os inevitáveis. As pessoas, nem tanto! Quem escolhe passar sob a escada do pintor tende a ser atingido por pingos de tinta; imprevisível é quando o balde cheio irá cair sobre a cabeça. Evitável é não estar no lugar errado na hora errada; basta não ir. Basta não fazer a coisa certa na hora errada; ou a coisa certa com a pessoa errada. E a prevenção? Prevenir-se ajuda desde que se possa e se saiba como fazer.
Acidentes, quase todos eles, são previsíveis e, portanto, evitáveis. Os que se costumam chamar de naturais, como terremotos, erupções vulcânicas, furacões, inundações, desmoronamentos, que me lembre, não são acidentes. È da natureza do nosso Planeta, desde sempre agitado; às vezes furioso. Os acidentes causados pelo homem podem ser evitados; construir uma casa numa encosta de terra porosa, pó exemplo. Entretanto ser atropelado dentro de uma loja por um carro dirigido por um idiota que pisou no acelerador ao invés do freio, dizem que é azar; ou coisa pior: azar do destino. Nem uma coisa nem outra; eu acho, sem saber o que é afinal.
Evitar males e desgraças maiores depende da ação e das medidas que se toma diante do que é probabilidade e possibilidade. Vale para acidentes e doenças. Nutricionistas, os novos “pop stars” da hora, tem receitas e conselhos para evitar todas as doenças. São os oráculos da civilização dos “chips” e dos i-Isso e dos i-Aquilo, quanto à saúde, o bem viver e, sinistramente, da longevidade.
A gripe pode ser evitada, dizem eles, comendo-se frutas cítricas ricas em vitamina C. Só não dizem quantos pomares inteiros deveremos comer para obter as gramas necessárias. Só uma vacina é prevenção para evitar a gripe; e só a “influenza”, que tomamos uma vez por ano; tomo eu, que sou do século passado, e que alguns graciosos hipócritas me dizem que faço parte do grupo da “melhor idade”.
Não são muitas as vacinas que temos disponíveis para evitar e erradicar doenças; certamente ainda teremos outras vacinas para outras doenças.
ANO NOVO, VIDA NOVA
Carlos Drummond de Andrade, outro que também se foi sem necessidade, admirava-se com quem “repartiu o tempo em pedaços”. Não me admiro assim como ele, talvez porque me falta o que nele sobrava; talento. Sigo os pedaços do tempo obrigado por uma convenção mundial, necessidade humana de civilizar-se, mas não vejo - e nem sinto – na prática e em mim que a maioria dos fatos, acontecimentos e fazeres do ano que passou tenham mudado já nesses dias de 2012 apenas por que um novo ano teve início. “Ano novo, vida nova” é só um desejo, legítimo sim, mas...
Tendo me livrado há décadas do peso metafísico da religião, e com o racionalismo crítico cartesiano e a lógica formal aristotélica sei que quem pensa desta forma não vive com muito conforto os dia-a-dias de hoje. A maioria religiosa insiste na  catequese enfadonha. Quem não professa uma religião, não presta, não é decente. Descarte se opôs a escolástica aristotélica sendo assim há um evidente conflito ao adotá-los como prática de comportamento. E por fim o fato de que o século já é o XXI, quando quase tudo é “nano”, rápido, superficial, descartável, antigo. Nada fácil.
Lembro do tempo que se dizia que “o que arde cura, o que aperta segura e o que é bom dura”. Hoje não; o que dura é velho fora de moda e, por via de um raciocínio torno, naturalmente, não é bom. Também me lembro de ouvir: “Essa geladeira é antiga, mas é boa. Tem 15 anos e ainda funciona perfeitamente!”.
Hoje ouço “essa TV (smartfone, computador, tablet, i-ped...) é antiga, não é boa. Tem um ano e funciona muito mal!”. Meu pai, na década dos anos 50 do século passado – isso significa 1950 – tinha um Skoda, um carro – melhor seria dizer um automóvel – polonês (ou seria húngaro?) do tempo da Segunda Guerra “novinho em folha”, ele dizia. E parecia ser mesmo.
O QUE NÃO SE VÊ A OLHO NU
A nanotecnologia – ou Nanotech – é nova e promissora. E já está presente em nossas vidas. Quase tudo é “nano” como são vírus, bactérias, uma célula cancerígena, “nanas criaturas” mortais, que desconhecem os pedaços do tempo organizados por humanos civilizados, movimentando-se livremente fora do tempo, apenas no espaço no interior do nosso corpo, um espaço teologicamente sagrado, porém hospedeiro conveniente, insubstituível e frágil do mal. Indefeso é pego de surpresa quando atacado.
Há como combatê-los e a ciência médica sabe o que fazer, mas, nem sempre, vence a batalha. Quando consegue, ao vencedor as batatas! Quando não consegue, perde. Simplesmente perde. Contudo existe um meio termo; o tratamento, que pode ser longo e, às vezes até para sempre. Isto é, enquanto houver vida.
Meu ano passado não acabou, assim como este não começou do zero; novinho em folha. São anos sobrepostos se confundindo com alguns acontecimentos que tiveram início antes mesmo de serem descobertos. Silencioso, indolor e invisível a olho nu o câncer alojou-se em mim sem aviso e permissão.
Na época da descoberta pensei e escrevi o que segue e mandei para uns poucos amigos:
O que é estar com câncer? - me perguntei muitas horas depois de ter recebido essa maligna notícia do médico. Difícil dizer! – respondi. Aí me dei contas de que perguntar a si mesmo e ter que responder me fazia tanto mal quanto estar com câncer. Não saber a resposta, pensei, explica tudo já que não há explicação que me satisfaça; que preencha a lógica metafísica. A ciência, que trata do que é físico, explica tudo e prova tudo, pois é de sua lógica; ter respostas pra tudo. Se não, não é ciência. Ela, a ciência médica, me responde por que é que estou com câncer, mas não vai além disso. Não me responde o que é estar com câncer. Assim devo me contentar com as minhas próprias e exclusivas respostas, mesmo correndo do risco de errar, avaliando mal, concluindo da maneira que mais me convém.
Estar com câncer é saber ter a morte enfiada nas minhas entranhas; é saber que não se luta contra o câncer, como se diz de famosos e midiáticos da hora; heróis, guerreiros. Fica-se, sim, a mercê de médicos e de seus procedimentos, num torpor incontrolável. Não há nada que posso fazer. Estou nas mãos dos médicos, de seus saberes, de seus conhecimentos e de suas irritantes palavras de apoio que soam quase que como desclassificar o mal. Soam como que desprestigiando o câncer; ele será derrotado. Menosprezo não mata câncer, câncer mata; mata pessoas; mais do que o ódio, a espada, a bala.
Estar com câncer é ter que ouvir que “tudo vai dar certo”, sem que expliquem tudo o que exatamente. É ouvir que Deus está me protegendo e que não permitirá que eu morra porque irá me curar. Essa é a lógica judaico-cristã; um peso metafísico que não carrego, e que se baseia na fé e na esperança, sendo, portanto, sem nenhuma lógica. Não carrego esse peso metafísico, mas no meu físico carrego um câncer. Não carrego o peso metafísico do pecado, da necessária salvação, da vida eterna da alma, da crença em algo ou alguma coisa suprema antecedente a tudo; capaz de ser antes mesmo de ser-se. Capaz de ser e estar, de modo que nada, nem ninguém, é capaz de ser ou de estar sem que seja por ele concedido ou permitido.
Estar com câncer é mergulhar nas minhas entranhas, por a prova minhas convicções, sem nenhuma prova, sem que alguém me prove o que é possível. É voltar ao passado e perceber que era só ilusão tudo o que, no presente, pensava dele.
Estar com câncer, é muito diferente de ter um câncer. Estar, ao contrário de ter, me faz pensar que o que não tenho não me afeta, não é meu não sou seu dono. Não tenho compromisso com ele e, sequer, sou responsável por ele; e por tê-lo. Estar, e não ter me faz pensar que ele apenas me acompanha; que é passageiro. Que ele pode me deixar, ir-se embora e nunca mais voltar. Isso me consola; eu mesmo me consolo, envolto nessa nebulosa, me ajustando a essa circunstância. Não sei que nome se dá a isso; se esperança se ilusão. Seja lá que nome tenha ou a isso se dê, não tenho tempo nem ânimo para buscar sua natureza e definição. Em fim, não importa.
Ao longo dos anos perdi amigos levados a morte pelo câncer em suas diversas modalidades; dos mais agressivos e de curto tempo, aos mais lentos e igualmente mortais. Outros sobreviveram. Nesse caso não há uma terceira hipótese; a cura. Não estou confiante, nem desesperado. Estou surpreso, suspenso entre um piscar de olhos.
CINCO MESES DEPOIS
Hoje cinco meses se passaram desde então. Uma cirurgia radical arrancou minha próstata e o câncer encravado nela; a biópsia anterior mostrou o que era e a que fiz depois mostrou que não havia metástase. Era o que mais importava naquele dia 3 de setembro.
A caminho do Centro Cirúrgico, pelos corredores do hospital, deitado na maca, apenas via o teto com luzes encravadas no forro. Naquele momento não me ocorreu nenhum pensamento que fosse apropriado a essa situação. Vendo as luzes do teto do corredor passando uma a uma, milhares delas, apenas lembravam essa cena idêntica que havia visto em filmes, ponto de vista, de pacientes sendo levados as pressas para a emergência. Naquele momento eu estava sendo levado para o Centro Cirúrgico ouvindo apenas o som trepidante das pequenas rodas da maca e olhando as luzes do teto do corredor passando uma a uma, centenas delas, milhares talvez, percorrendo solitário um tempo e uma distância sem fim.
Colocado na "mesa de operação" percebia uma dezena de pessoas a minha volta cada uma tratando de algum procedimento, todas elas mulheres vestidas com toucas e batas verdes e sorridentes. Eu retribuía os sorrisos, assustado sem compreender porque estávamos todos tão descontraídos naquela situação. Logo percebi que os sorrisos delas eram de cortesia profissional; o meu de amarelo medo.
"Bom dia! Eu sou sua anestesista e meu nome é doutora Cecília!" Era um rosto jovem, tranquilo, simpático no  meio de uma touca verde.
"Cecília? - indaguei alegre - isso é muito bom! Sinto-me três vezes protegido."
Surpresa - vi no olhar dela - Cecília perguntou com uma doce curiosidade.
“Por quê?”
"Porque minha mãe e minha filha chamam-se Cecília." Ela apenas sorriu como sorriam todas as enfermeiras e auxiliares.  É do que me lembro.
ACORDO, LOGO ESTOU VIVO
Após 3 horas e meia de cirurgia, soube depois, acordei na UTI. Uma penumbra enigmática e sons de aparelhos de monitoramento indicavam que eu estava vivo - "mas em que situação", pensei desconfiado enquanto outros rostos, agora todos sérios, agitavam-se a minha volta enquanto eu apenas movia os olhos num estreito campo de visão. Sedado e desorientado desisti e adormeci.
Acordei novamente sem noção de tempo e espaço, com a visão e o toque carinhoso de minha mulher, Ciza, a Força, com a boa noticia; "Foi tudo bem!" e logo saiu, pois não podia estar ali, nem ter entrado. Queria estar comigo quando eu acordasse e conseguiu entrar na UTI.
Lá o tempo para. Eu mal girava a cabeça para um lado e para o outro e sem óculos só enxergava vultos. Alguns se movimentavam em silencio, outros estavam imóveis. Novamente o único som que ouvia era dos aparelhos que, agora percebia estavam todos atrás de mim porque era para onde as enfermeiras olhavam, faziam anotações, murmuravam palavras incompreensíveis e injetavam medicamentos num pequeno tubo que entrava diretamente numa artéria do meu braço direito.
Quando fui levado para o quarto, deitado numa maca com oxigênio e soro, percebi algumas pessoas junto a porta de saída da UTI, do lado de fora, e ouvi alguém dizer: “Mais um saindo pro quarto! Graças meu Jesus...” e continuou dando graças; já distante não entendia as palavras mas ouvia o que parecia ser uma prece. Mentalmente agradeci ao desconhecido por sua solicitude e de volta ao quarto por quilométricos corredores e por um espaçoso elevador entendi que aquela porta,onde aquelas pessoas se aglomeravam, era por onde apenas saiam os vivos.
Recebi visitas; meus filhos, amigos, parentes; enfermeiras fizeram-me curativos, retiraram os drenos e finalmente o Dr. Fernando Vasconcelos Pombo me deu alta e me mandou pra casa com uma sonda que ligava a bexiga a uma bolsa; fiquei com ela 22 dias.
Sem a próstata e o câncer que estava nela vou ser monitorado durante os próximos dois anos fazendo exames mensais de controle do PSA que é uma “enzima utilizada para diagnóstico, monitorização e controle da evolução do câncer de próstata”.
PREVENÇÃO, CAUTELA OU PRUDÊNCIA?
Todas elas, qualquer uma ou só uma delas. Porém não é o bastante. Para se saber se há câncer na próstata é preciso fazer exames freqüentes após os 40 anos de idade. Um deles é o PSA; para isso basta colher um pouco de sangue num laboratório. O outro é o toque retal; esse o vilão. Não tenho dados estatísticos, mas sabemos todos – os médicos urologistas sabem com precisão – que a maioria dos homens não se submetem a esse exame apenas por preconceito. São mais vítimas do que culpados. Vítimas porque vivem o conflito de agir e omitir-se diante de um dever ético – no sentido grego de ser “aquilo que gera uma ação genuinamente humana...de dentro do sujeito moral...do âmago do agir para a intenção.” Essa dialética não leva nenhum homem com mais de 40 anos a consultar um urologista, sem dúvida. Talvez o exemplo e o testemunho ajudem.
As alterações físicas, nos homens que se submetem a essa radical cirurgia, são três: infertilidade, impotência e incontinência urinária. Entretanto nem todos os corpos masculinos são iguais e reagem de maneiras distintas. Quanto à infertilidade a situação é irreversível. Retirada a próstata também sai a vesícula seminal. Na grande maioria dos casos essa cirurgia é feita em homens com mais de 50 anos idade quando então já têm filhos, supõe-se. A impotência é somente uma probabilidade. Quando ocorre pode ser revertida com medicamentos. A incontinência urinária dura pouco e depois tudo volta ao normal. Ereção e orgasmo têm relação com a libido, não com a próstata. Em alguns casos, porém, essas duas condições masculinas podem ser afetadas.   Não é meu caso, como também não é de muitos outros, que agora soube, também vivem plenamente sua sexualidade.
FINALMENTE
Faço esse longo relato na crença de que ele possa ser útil de alguma maneira. Relatos de pacientes, de quem é sujeito de sua própria história são, em geral, mais convincentes do que os que fazem os médicos. Isso porque os relatos médicos são científicos e profissionais. Acreditamos neles porque não nos resta outra escolha; e é assim que deve ser. Nós, porém, os pacientes, ao relatarmos nossas experiências, testemunhando o que vivenciamos, muitas vezes, ajudamos muito mais. Conscientiza mais e leva muitas pessoas a se decidirem a fazer o que lhes é melhor. O testemunho é prova. É assim nos tribunais, nas igrejas, nos livros, nos palcos e nos palanques e onde mais for possível testemunhar. Testemunho porque me encorajou uma entrevista do Dr. Paulo Hoff (*), Diretor de Oncologia do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, que cuidou – e cuida - de pessoas famosas e importantes em suas atividades, conhecidas da maioria dos que me lêem neste momento. Encorajou-me não por esse detalhe, mas, sim por sua competência e experiência reconhecidas. Ele disse mais ou menos isso: “... aos que puderem, relatem suas experiências com o câncer porque é possível tratá-lo quanto mais cedo for diagnosticada sua existência.”
(*) – Especializou-se e foi professor médico titular do M.D. Anderson, em Houston, Texas.